sábado, 20 de fevereiro de 2010
Fado Tropical ou Raízes do Brasil
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
“Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...”
Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
“Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa”
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Essa música, composição de Chico Buarque e Ruy Guerra para o musical “Calabar – O elogio da traição”, é uma das maiores obras da poesia musicada brasileira que eu conheço. Foi escrita entre 1972 e 1973, sob censura do regime militar. A história por trás do musical é bastante interessante, mas Fado Tropical, por si só, é um fenômeno.
A música fala claramente do Brasil, sobre o lirismo, a DST e o estilo musical que herdamos de Portugal. De cara percebe-se uma divisão na canção, com duas vozes diferentes cantando coisas diferentes. De um lado, um cantor (versos em itálico) coloca em palavras as características e as belezas de uma terra semelhante a Portugal (ou seria o próprio Portugal transplantado?). De outro lado, um narrador (versos entre aspas), herdeiro do sangue português, declama desabafos e justifica a crueldade de seus atos.
[Permitam-me uma conjectura tosca: estaria o primeiro (o cantor) ecoando as Raízes do Brasil, do pai do Chico Buarque? Ou talvez o segundo estivesse dialogando com Sérgio Buarque, ao descrever sua herança de “homem cordial”? Fato é que Fado Tropical mostra a ligação intrínseca do povo brasileiro com suas raízes portuguesas, raízes essas presentes e que fundamentam ainda hoje as relações entre Brasil, Portugal e PALOP.]
O segundo, o narrador, é a grande estrela da música. Seu poema difere do primeiro: é mais impressionista, lírico, íntimo, mais dramático. Não canta suas estrofes, apenas declama-as. Ao mesmo tempo que desabafa a desumanidade seus atos, busca justificar-se, salvar-se em sua sensibilidade e... bondade? Ele não consegue equilibrar sentimentos e atitudes (ou seria dever?). Ele age como que por impulso, por ordem superior, ou por inércia. O fado se aprofunda quando ele fala, puxa o ouvinte para o fundo do poço de culpa e remorso que ele sente.
Por duas vezes, ele fala ao público. Na primeira se apresenta, se mostra. Na segunda, com versos em forma de soneto, aprofunda o conhecimento de seu estado dicotômico: “Se trago as mãos distantes do meu peito / É que há distância entre intenção e gesto”. Esse estado, entre o sensível e o desumano, imita a própria clivagem da música: de um lado, bela e descritiva; de outro, angustiada e introspectiva.
O narrador se esconde entre os versos do cantor. Aparece e se esconde atrás das descrições e da canção. Quando reaparece, é para tomar ar e falar, para então novamente mergulhar na sua bravura de homem cordial e cruel. Note como, enquanto ele fala, o violão vai perdendo espaço para o violino. O som do violino some quando o cantor volta. É instrumento exclusivo da angústia do narrador – esse herdeiro lusitano cheio de lirismo e... sífilis?
Um primor.
Apesar da tosquíssima seleção de imagens, a versão da música que mais me agrada é esta: http://www.youtube.com/watch?v=VHQFmBrjLCM
(Veja que a palavra “sífilis” foi suprimida da música; ordem da censura.)
(…) O maior fardo do País é sua herança ou o destino previsto pelo cantor?
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Achei a análise sensacional. Às vezes, ler sobre nossa 'herança' me enche, porque é um assunto que não chega a lugar algum (afinal todos os povos do novo mundo terão sempre uma herança do conquistador, não é mesmo? não dá simplesmente para entender e conviver com isso? tem que escafunchar mais do que já foi escafunchado?). Mas seu texto é diferente, primeiro porque não é 'sociológico' (muitas vezes isso é sinônimo de chatice), segundo porque trata do assunto de forma leve e despretensiosa (para mim, a definição de elegância). Há muito tempo não leio um texto com esse tema sem me chatear. Obrigada por isso!
ResponderExcluirótima escolha, bela descrição
ResponderExcluirsaludos de sampa
ótima escolha, bela descrição
ResponderExcluirsaludos de sampa