Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
“Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...”
Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
“Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa”
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonialEssa música, composição de Chico Buarque e Ruy Guerra para o musical “Calabar – O elogio da traição”, é uma das maiores obras da poesia musicada brasileira que eu conheço. Foi escrita entre 1972 e 1973, sob censura do regime militar. A história por trás do musical é bastante interessante, mas Fado Tropical, por si só, é um fenômeno.
A música fala claramente do Brasil, sobre o lirismo, a DST e o estilo musical que herdamos de Portugal. De cara percebe-se uma divisão na canção, com duas vozes diferentes cantando coisas diferentes. De um lado, um cantor (versos em itálico) coloca em palavras as características e as belezas de uma terra semelhante a Portugal (ou seria o próprio Portugal transplantado?). De outro lado, um narrador (versos entre aspas), herdeiro do sangue português, declama desabafos e justifica a crueldade de seus atos.
[Permitam-me uma conjectura tosca: estaria o primeiro (o cantor) ecoando as Raízes do Brasil, do pai do Chico Buarque? Ou talvez o segundo estivesse dialogando com Sérgio Buarque, ao descrever sua herança de “homem cordial”? Fato é que Fado Tropical mostra a ligação intrínseca do povo brasileiro com suas raízes portuguesas, raízes essas presentes e que fundamentam ainda hoje as relações entre Brasil, Portugal e PALOP.]
O segundo, o narrador, é a grande estrela da música. Seu poema difere do primeiro: é mais impressionista, lírico, íntimo, mais dramático. Não canta suas estrofes, apenas declama-as. Ao mesmo tempo que desabafa a desumanidade seus atos, busca justificar-se, salvar-se em sua sensibilidade e... bondade? Ele não consegue equilibrar sentimentos e atitudes (ou seria dever?). Ele age como que por impulso, por ordem superior, ou por inércia. O fado se aprofunda quando ele fala, puxa o ouvinte para o fundo do poço de culpa e remorso que ele sente.
Por duas vezes, ele fala ao público. Na primeira se apresenta, se mostra. Na segunda, com versos em forma de soneto, aprofunda o conhecimento de seu estado dicotômico: “Se trago as mãos distantes do meu peito / É que há distância entre intenção e gesto”. Esse estado, entre o sensível e o desumano, imita a própria clivagem da música: de um lado, bela e descritiva; de outro, angustiada e introspectiva.
O narrador se esconde entre os versos do cantor. Aparece e se esconde atrás das descrições e da canção. Quando reaparece, é para tomar ar e falar, para então novamente mergulhar na sua bravura de homem cordial e cruel. Note como, enquanto ele fala, o violão vai perdendo espaço para o violino. O som do violino some quando o cantor volta. É instrumento exclusivo da angústia do narrador – esse herdeiro lusitano cheio de lirismo e... sífilis?
Um primor.
Apesar da tosquíssima seleção de imagens, a versão da música que mais me agrada é esta: http://www.youtube.com/watch?v=VHQFmBrjLCM
(Veja que a palavra “sífilis” foi suprimida da música; ordem da censura.)
(…) O maior fardo do País é sua herança ou o destino previsto pelo cantor?